‘Não somos, de fato, livres’, diz professora sobre o 13 de maio
'As favelas são as novas senzalas', afirma Amanda em reflexão sobre a data.
“Irmãos e irmãs assumam sua raça, assumam sua cor. Essa beleza negra Olorum quem criou. Vem pro quilombo axé dançar o Nagô. Todos unidos num só pensamento, levando a origem desse carnaval, desse toque colossal. Pra denunciar o Racismo. Contra o Apartheid Brasileiro. 13 de Maio não é dia de negro”. A letra é da música “Quilombo Axé”, de autoria do Mestre Zumbi Bahia e interpretada pelo Afoxé Oyá Alaxé. Como um verdadeiro hino de resistência, termina com a seguinte informação: “13 de maio não é dia de negro”.
De fato, não é. A data que, historicamente, marca a abolição da escravatura em 1888 tem sido cada vez mais questionada e, ao invés de ser considerada como um momento de celebração, colocada como oportunidade de reflexão a respeito da trajetória do povo negro neste país. Como jornalista, prezo sempre pela imparcialidade. Mas, como mulher negra que sou, não é possível escrever sobre essa data de maneira objetiva, sem refletir (e sentir) o peso de ser quem somos. A pergunta que lanço nesta data é: o povo negro é, verdadeiramente, livre?
Para dividir comigo tais reflexões, conversei com a professora universitária Amanda Crispim. Mulher negra que já conquistou espaços, até então, não cogitados para ela. “As marcas do racismo me acompanham desde a infância. Durante muito tempo, eu não entendia o que era esse corpo negro e o que significava habitar espaços em que eu era a única pessoa negra, sem referências de outras mulheres negras”, comenta. Até que ela chegou à universidade e passou por uma experiência que mudaria para sempre sua vida.
“Eu fiz Letras na UEL. Um belo dia, entrei em uma sala, por acaso, e vi uma professora negra dando aula. Ela analisava um poema – “Coração Tição”, de Ana Cruz, uma autora também negra. No poema, o eu lírico falava sobre seu autodescobrimento enquanto mulher negra, ela queria se desvencilhar de tudo aquilo que a impedia de se encontrar com suas origens, com seu verdadeiro eu. Naquele momento, eu tive a maior identificação da minha vida. Eu me reconhecia no eu lírico do poema, na poeta, na professora, nas dez mulheres negras que estavam sentadas naquela sala assistindo a aula. Até então, eu nunca tinha conseguido me encontrar nesses espaços em que eu me colocava, a partir daí, pela literatura, eu fui me construindo enquanto mulher negra”, relata Amanda.
Pode parecer pequeno, mas não é. Quando ouvi as palavras de Amanda me identifiquei de imediato e sei que tantas outras pessoas negras que lerem este texto vão sentir o que sentimos. O racismo ainda continua impedindo que a população negra avance, conquiste, escreva outra história. Não há liberdade real onde não existe dignidade, onde não existe acesso a direitos básicos, onde não há nem ao menos o direito de viver já que a população negra – e periférica – ainda é a que mais morre assassinada brutalmente neste país. Liberdade para quem?
Ainda nessa perspectiva, Amanda complementa: “13 de maio não é um dia a ser celebrado pelo povo negro porque não foi, propriamente, um dia de libertação. Voltemos na história. O que aconteceu no dia seguinte da abolição, o 14 de maio, o que de fato mudou para os negros? Houve a inserção social dessa população com políticas públicas de reparação histórica? Não, houve marginalização, os negros ficaram sem trabalho, sem direitos, sem comida”.
A professora lembra ainda da obra de Carolina Maria de Jesus, uma das primeiras autoras negras publicadas no Brasil, que em seu livro “Quarto de Despejo” faz uma reflexão sobre 13 de maio de 1958. Carolina começa seu relato lembrando que “É o dia da abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos”. Após contar como foi seu dia em busca de comida para os filhos, ela conclui: “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual, a fome!”.
Infelizmente, o relato ainda continua atual. “Não somos verdadeiramente livres. Hoje, somos escravos da fome, da falta de dignidade, do desemprego. As favelas são as novas senzalas. O racismo continua nos prendendo e nos impedindo de conquistar a verdadeira liberdade”, diz Amanda.
Mais uma dica para refletir
Como uma mulher negra formada pela literatura, Amanda compartilhou mais uma dica de romance abolicionista que eu não poderia deixar de citar. A obra chama-se “Úrsula”, da escritora Maria Firmina dos Reis – mulher negra considerada a primeira romancista brasileira. Outra conquista importante deste romance é que ele traz, pela primeira vez na literatura brasileira, personagens negras que têm voz e são ativas dentro da obra.
Em um certo momento da história, acompanhamos o diálogo entre preta Susana – mulher negra escravizada sequestrada de África – e Túlio – um homem negro que conseguiu comprar sua alforria. Contente pelo feito, Túlio comenta com Susana que agora será livre. Mas, preta Susana discorda e diz: “a gente está longe do nosso país, fora da nossa casa, isso não é liberdade de verdade. Liberdade é muito mais do que uma carta de alforria”.
O meu desejo (e a minha luta) nesse 13 de maio de 2021 é que o povo negro consiga ser, de fato, livre!
Fiama Heloisa - Redação Tem