Abstenções, votos em branco e nulos formam a nova maioria

Segundo turno confirma tendência de crescimento da parcela do eleitorado descontente com as opções oferecidas.

Imagem: Paulo Pinto/Agência Brasil

Artigo de Fábio Silveira

Tiago Amaral (PSD) em Londrina, Ricardo Nunes (MDB) em São Paulo, Sebastião Mello (MDB) em Porto Alegre. Além de serem alguns dos 51 prefeitos eleitos no segundo turno, eles têm mais uma coisa em comum: suas votações foram superadas pelas abstenções (eleitores que nem se deram ao trabalho de sair de casa para votar) e votos em branco e nulos. Em Londrina as abstenções, brancos e nulos somaram 144.521 votos, pouco mais que os 143.745 eleitores que escolheram Amaral. Em São Paulo as abstenções somaram 3.605.433 eleitores, superando os 3.393.110 que votaram em Nunes. E em Porto Alegre foram 436.467 eleitores “nem-nem”, superando os 406.467 que reelegeram Mello.

Em Curitiba o prefeito eleito Eduardo Pimentel (PSD) conquistou 531.029 votos e superou as abstenções, brancos e nulos, opção adotada por 502.439 eleitores. Mesmo assim, na capital paranaense o coro dos descontentes ficou dentro da média nacional: 35,29%. Fortaleza foi a exceção que confirmou a regra: na capital do Ceará, onde Evandro Leitão (PT) superou André Fernandes (PL) em quase 11 mil votos (716.133 a 705.295), as abstenções ficaram em 348.253, o que equivale a 19,68%, bem abaixo da média nacional.

Sem querer estragar a festa dos vencedores, mas com a mão na tomada, já pronto para desligar o som, devo dizer que é importante que a política institucional, a imprensa e o meio acadêmico precisam tratar esses números com atenção e respeito. Não significa que o fato de as abstenções, votos em branco e nulo terem superado a votação de muitos prefeitos eleitos no segundo turno retire a legitimidade deles. Ainda não é o caso de rezar para pneus, chamar ETs com a luz do celular ou se agarrar em parabrisa de caminhão. Mas é preciso reconhecer que estamos diante de um problema sério.

Imagem: Paulo Pinto/Agência Brasil

Tratando em percentuais, além dos casos já citados, o coro dos descontentes somou 36,15% dos eleitores em Londrina, 38,67% em São Paulo, 39,76% em Porto Alegre. São números inéditos. Cresceram consideravelmente nas eleições deste ano. Para citar Londrina como exemplo, as abstenções (aqui sem brancos e nulos) foram de 8% na eleição municipal de 1988 (logo depois da redemocratização) e se estabilizaram em torno de 14% a 15% nos anos 2000. Em 2020 subiram para 25%, mas esse número pode ser colocado na conta da pandemia. Neste ano a expectativa era de um retorno para os patamares de 2016, na faixa dos 14%. O recuo não aconteceu.

Não representam

E é aqui que precisamos pensar além dos números. Marcos Nobre, filósofo e cientista social, lançou no ano passado o livro “Limites da democracia — de junho de 2013 ao governo Bolsonaro”, no qual apresenta uma análise interessante da crise institucional que levou a extrema-direita ao poder no Brasil. A tese de Nobre é que a explosão de descontentamento expressa pelas jornadas de junho de 2013, num momento em que a economia brasileira tinha números positivos e o país estava com índices que os economistas consideram pleno emprego, marcaram o esgotamento do que ele chama de “peemedebismo”, o presidencialismo de coalizão que garantiu governabilidade desde a redemocratização do país – e que tinha o MDB e o centrão como fiadores. Neste formato os presidentes da República — que nunca saíram das urnas com maioria no parlamento — pagavam o adesismo do chamado “centrão” distribuindo cargos e emendas do orçamento aos parlamentares. Dessa forma, conseguiam maioria no Congresso e estabilidade para governar.

Goleada

Existem várias discussões sobre as causas da jornada de junho, que tiveram como estopim aumentos das passagens de ônibus em algumas grandes cidades. Dentro deste caldeirão de insatisfações também estava o mal estar com o sucateamento de serviços públicos expresso com o slogan “Padrão Fifa”, uma ironia aos investimentos para a realização da Copa do Mundo de 2014. A poção ainda tinha o tempero da corrupção e de políticos — e não só eles — que se apropriam dos recursos do Estado.

Imagem: Tomaz Lima/Agência Brasil

Junho de 2013 foi uma ruptura com uma fase de otimismo da sociedade brasileira. A partir dali tudo sairia dos trilhos, do futebol à política. Nesse sentido, essa quebra dos cristais pode ser considerada o primeiro gol dos 7 a 1 que aconteceriam em 2014, no Mineirão. Do campo de futebol, a goleada se estendeu todos os setores da vida nacional.

Voltando à análise de Marcos Nobre, podemos identificar nessas manifestações o fim da “Nova República”. O fato é que quem se apresentou como alternativa a esse formato, usando uma roupagem (falsa, mas roupagem) de anti-sistema foi a extrema-direita, embora essas correntes fossem sistêmicas e atuassem pela manutenção do sistema.

Monstros

Surfando nessa onda, a extrema-direita ganhou as eleições presidenciais de 2018 tendo como candidato um deputado histriônico e inepto do baixo clero, que passou quase três décadas no Congresso tendo aprovado poucos projetos — além de colocar todos os filhos na política. Nada mais pró-sistema do que esse perfil. Não era difícil de prever, mas a gestão de Jair Bolsonaro na presidência foi desastrosa e criminosa, vide a tragédia que foi a gestão da pandemia e o resultado da política econômica, que levou milhões de brasileiros à fome e à miséria.

É bem verdade que a derrota de Bolsonaro em 2022 não colocou o bolsonarismo no seu devido lugar — a lata de lixo da história. O bolsonarismo segue sendo uma força importante na sociedade brasileira. O “mito” continue senda venerado pelos seus seguidores, como uma espécie de Jim Jones brasileiro do Século XXI (Jim Jones, o original, liderou uma seita e levou 900 fieis ao suicídio no fim dos anos em 1978). Por outro lado, mesmo os negacionistas mais convictos não conseguem negar que o bolsonarismo não conseguiu construir uma estrutura de poder que substitua o “peemedebismo” mencionado por Nobre. Na realidade o bolsonarismo está mais para os monstros que surgem quando, como bem observou Antônio Gramsci, o velho já morreu e o novo ainda não nasceu.

E é aqui que entram esses quase 40% do eleitorado, que protestaram ao se abster de votar, seja ficando em casa, seja indo na seção eleitoral para não votar em ninguém. Essa insatisfação mostra que se é verdade que a saída bolsofascista para a crise da forma política não emplacou, voltar para os braços do velho centrão, que faz política de costas para o povo e em busca do enriquecimento pessoal, também não é opção. A força dos “sem opção” é um tapa na cara dos sem noção. Escancara que o sistema político é insatisfatório, não conversa com o povo, ignora suas necessidades. Afinal, para além das profundas desigualdades brasileiras que nunca foram tocadas, ainda que tenha forçado os ditadores do ciclo 1964-1985 a vestir o pijama (mesmo que impunes) e colocado o braço empresarial da ditadura na defensiva, a democracia nunca chegou ao povo.

Nas quebradas, o único contato das pessoas com o Estado é via polícia. A bala não é de festim e na periferia não tem dublê. Lá prevalece a obscura “doutrina Mello”, do obscurantista PM Mello Araújo, que diz que existem dois tipos de abordagem policial: uma para os bairros ricos e outra para a periferia. Quem está em situação de Brasil sabe quais são as diferenças (Mello Araújo, o oficial da PM paulista que deu essa declaração em 2017, foi eleito vice-prefeito de São Paulo, na chapa de Nunes). O genocídio e o encarceramento em massa de jovens pretos e pobres nunca deixou de acontecer. Inclusive piorou nos últimos anos.

A nova maioria dos 40% sem opções eleitorais fez um barulho ensurdecedor, amplificado pelas urnas. Quem tem preocupação com a democracia, mesmo que seja uma democracia formal como a brasileira, precisa prestar atenção neles. A julgar pelo retrospecto, parte dos eleitos de domingo continua neste eterno Baile da Ilha Fiscal — o último antes da queda da monarquia brasileira.


🗳️ Londrina

Abstenções, brancos e nulos – 144.521
Tiago Amaral – 143.745
Maria Tereza – 111.464

🗳️ São Paulo

Abstenções, brancos e nulos – 3.605.433
Ricardo Nunes – 3.393.110
Guilherme Boulos – 2.323.901

🗳️ Porto Alegre

Abstenções, brancos e nulos – 436.025
Sebastião Mello – 406.467
Maria do Rosário – 254.128

🗳️ Fortaleza

Evandro Leitão – 716.133
André Fernandes – 705.295
Abstenções, brancos e nulos – 348.253

🗳️ Curitiba

Eduardo Pimentel – 531.029
Abstenções, brancos e nulos – 502.439
Cristina Graeml – 390.254

Fábio Silveira