As crises do jornalismo
Texto do jornalista Fábio Silveira.
Sempre que se ouve falar sobre a crise do jornalismo é bom perguntar ao interlocutor: qual delas? Até para saber de onde se fala. Sim, porque neste caso podemos falar de crises assim mesmo, no plural. Há uma crise que é a de um modelo de negócio que se manteve estável ao longo do Século XX, mas foi abalada pela internet, principalmente depois das redes sociais. O bolo publicitário, que antes era dividido por jornais, rádios e televisões, ganhou novos e vorazes concorrentes que têm em mãos os algoritmos que permitem conhecer minuciosamente o perfil dos consumidores – o tal microtargeting — uma arma poderosa nessa disputa. Sobre esse aspecto, o dossiê “Jornalismo pós-industrial – adaptação aos novos tempos”, produzido em 2012 pelo Tow Center for Digital Journalism e traduzido e publicado no Brasil em 2013, na Revista ESPM, se mantém atual.
Quero tratar aqui de outra faceta, que nos permite falar em crises do jornalismo, no plural. Refiro-me às decisões e posicionamentos editoriais que algumas empresas jornalísticas adotam e que contribuem para fragilizar a credibilidade da própria imprensa. Dois exemplos desde começo de 2023 são gritantes neste sentido.
Primeiro o caso do rombo bilionário das Lojas Americanas, empresa que está em processo de recuperação judicial. O rombo colocou em risco a empresa e afeta o mercado financeiro, o famoso “mercado”, que fica nervoso quando se fala em combate à fome. Chama atenção o tratamento obsequioso dado pela imprensa aos bilionários Jorge Paulo Lemann, Marcel Hermann Telles e Carlos Alberto Sicupira, que controlam 31% das ações da empresa.
O rombo em questão é fruto de uma trapaça contábil. Lemann, um dos controladores da empresa é um homem que transita também pela política defendendo “renovação” e “ética”. Em vez de críticas contundentes, o trio de bilionários ganhou defensores na imprensa, inclusive colunistas importantes que empilham argumentos a favor deles. O bilionário que tem participação em empresas que são grandes anunciantes, parece isento a questionamentos. A estudante de medicina da USP que lesou seus colegas em cerca de R$ 1 milhão seus colegas de turma, desviando o dinheiro da formatura, recebeu críticas muito mais contundentes. Não que o desvio da estudante não deva ser investigado e punido. Mas o milhão dela são centavos perto dos bilhões dos pobres “meninos” ricos das Americanas.
A defesa apaixonada do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto é outro desses capítulos em que a imprensa (ou parte dela) joga contra a sua própria credibilidade. E o ápice desse show de horrores foi a “entrevista” do neto de Bob Field ao Roda Viva. A começar pela entrevista gravada – será que se fosse ao vivo, como costumam ser as entrevistas do Roda Viva a situação fugiria do controle?
A bancada amiga, com zero teor de pluralidade, fez uma entrevista chapa branca. Para disfarçar o adesismo, fizeram algumas perguntas protocolares sobre questões como o fato de Campos Neto ter ido ao local de votação, em outubro do ano passado, com a camisa amarela que faz parte da indumentária bolsonarista. Perguntaram também sobre a participação dele no grupo de zap dos ministros do ex-presidente Jair Bolsonaro, na condição de animador da plateia com prognósticos eleitorais tão furados e fora da realidade quanto as taxas de juros definidas pelo BC. Foram perguntas protocolares, muito distantes da postura belicosa adotada no Roda Viva quando o entrevistado não reza pela cartilha da bancada.
Nenhuma questão sobre os milhões de dólares do presidente do Banco Central autômato – porque de autônomo ali é só o nome – em paraíso fiscal; zero sobre o erro de cálculo do fluxo de dólares, que ajudou o governo a pintar um quadro menos tenebroso da trágica gestão Bolsonaro/Paulo Guedes. Enfim, escassez de questões e fartura no esforço comovente para tentar fazer Campos Neto parecer algo que ele passa longe: alguém independente para justificar a “independência” ou “autonomia” do Banco Central. E por fim, já que a entrevista foi feita sob encomenda para defender a “autonomia” do BC, faltou perguntar sobre a dependência de Campos Neto com relação ao banqueiro André Esteves, que disse ser consultado sobre a taxa de juros.
Quando agem dessa forma, esses setores da imprensa usam o nome do jornalismo em vão e defendem o 1% mais rico, num país que é um modelo trágico da desigualdade perpetrada ao longo dos séculos. Nada daquela história de “confortar os aflitos e afligir os confortáveis”. Pisoteiam na imagem do jornalismo como “cão de guarda” em defesa do cidadão contra os poderosos, tão cara ao liberalismo que eles professam. A triste e áulica bancada do Roda Viva comprova o que o jornalista francês Serge Halimi, que preside o Le Monde Diplomatique, escreveu em 1998, num livro chamado “Os novos cães de guarda”: eles não estão aí para defender o cidadão, mas os (muito) ricos – nesmo que a custo da democracia.
Os novos cães de guarda não largam o osso dos poderosos. Mas isso que eles fazem em nome do jornalismo rebaixa e destrói a credibilidade do jornalismo. Para fazer uma entrevista chapa branca como essa, nem seriam necessários jornalistas. O ChatGPT faria melhor. E para manter a lógica de defesa do capital, seria bem mais barato – e lucrativo – para as empresas de comunicação. Para sobreviver às suas crises, o jornalismo precisa de muito mais.
Fábio Silveira
Doutor em Comunicação pela FAAC/Unesp e mestre em Ciências Sociais pela UEL. Atualmente é professor do Departamento de Comunicação da UEL.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Tem Londrina.
Fábio Silveira